segunda-feira, junho 20, 2005

Ainda o mamaroma...

"Graham Greene e Cunhal
Clara Ferreira Alves

O Eduardo Lourenço contou-me uma vez esta história. Tendo encontrado por acaso (Lourenço vive em Vence, na Provença) na estação de caminhos-de-ferro de Antibes, onde Graham Greene viveu os últimos anos da sua vida, o grande escritor, e tendo ficado embasbacado sem saber o que fazer, se abordá-lo com a conhecida e vulgar frase, admiro muito o seu trabalho, se simplesmente interpelá-lo dizendo sou português etc. e tal, resolveu o nosso sábio professor dizer alguns palavras ao inglês. Greene revelou-se amável para com a referência a Portugal, onde vinha com frequência para casa de uma amiga em Sintra, e confessou a Eduardo Lourenço que a única pessoa que gostaria de ter conhecido por estes lados, e parece que nunca tinha conseguido, era Álvaro Cunhal.
As simpatias esquerdistas de Greene eram famosas, e estavam escritas em vários textos e ensaios, e, sabe-se, foi-lhe mesmo recusado um visto para ir à América, por causa das ligações comunistas. Foi-lhe recusado esse visto a ele e a Gabriel Garcia Márquez, et pour cause, e ambos escreveram um hilariante texto sobre o assunto.
Mas, no caso da curiosidade por Álvaro Cunhal, que por esses tempos era um militante comunista saído da clandestinidade para a revolução, percebe-se que a atracção da Graham Greene não era tanto pelo chefe político e pelas suas crenças, e sim pelo símbolo ideológico e pela sua biografia torturada e resistente. Ou seja, o que o atraía em Cunhal era precisamente o que nos atraía em Cunhal, a sua dimensão mitológica e as suas características romanescas, para não dizer românticas. E também, claro, a sua dimensão pecadora e desviante. Cunhal era um segredo, um enigma, e morreu assim, embora nos últimos anos da sua vida se tivesse aberto como nunca ao mundo cá de fora, às pessoas, à beleza da existência e da vida sem o espartilho do cânone político e estético.
Apesar das falácias e dos erros, da perigosa obsessão pela pureza ideológica, da cegueira política, Álvaro Cunhal, que pudemos voltar a ver, num dos seus momentos mais ameaçadores, no duelo com Mário Soares do «olhe que não, sr. Dr., olhe que não» (transmitido pela RTP -Memória esta semana), quando ele se transformava no papão da liberdade e num Dr. Barreirinhas Cunhal que nada tinha a ver com os panfletos românticos do comunismo, incluindo os assinados por Manuel Tiago, Álvaro Cunhal, repito, era uma personagem de ficção. Daquelas demasiado boas para serem verdadeiras, e com uma espessura física e moral que transcende o que designamos, à falta de melhor, por vulgar condição humana. Nesse sentido, tal como o seu antigo pupilo, inimigo e adversário, Mário Soares, Cunhal era muito pouco português. Um homem da acção e do pensamento, que mudou a nossa história e que nunca se lamentava.
Todos quisemos, como Graham Greene, conhecê-lo, mas, pergunto-me se alguém pode chegar a conhecer alguém a não ser, como na ficção, imaginando. "