sábado, março 26, 2005

Quem são os "carrascos"?, por Vasco Pulido Valente

Quem são os "carrascos"?
Vasco Pulido Valente
Público, 25 de Março de 2005

Há pouco tempo, e excepto para pessoas com muita sorte ou com muito dinheiro ou, preferivelmente, com as duas coisas, a vida era curta e brutal. O trabalho matava, não existia tratamento médico para quase nada e para quase ninguém, a dor física não passava de uma experiência banal. Vi ainda numa aldeia a 15 quilómetros de Sintra, sem água nem luz, velhos de 40 anos, mulheres de 30 que pareciam de 50, crianças que morriam por acaso e quase por hábito. E até quando a vida se tornou mais branda e mais longa, toda a gente partia do princípio que ela durava o que durava e que não valia a pena tomar um especial cuidado para a proteger ou esperar salvação de uma medicina com uma tecnologia primitiva e sumária. Essa idade de miséria e de risco, de ignorância e também de inocência, acabou para sempre.
A especulação sobre a natureza da vida só começou na altura em que se conseguiu que a vida se estendesse ao extremo do possível e mesmo a situações que, em geral, se não reconheciam como vida. O caso de Terri Schiavo, que se tornou um símbolo, mostra a que ponto chegou a perplexidade e o horrível fanatismo que ela provocou. Terri Schiavo não comunica, nem voltará a comunicar com o mundo, e está na absoluta e definitiva dependência de um tubo de hidratação e um tubo de alimentação. É isto vida? É vida humana? Ou é um "estado" ilegítima e abusivamente estabelecido por uma medicina automática e acéfala? Continuar esse "estado" defende a vida ou, pelo contrário, encoraja a medicina a criar "estados" que, de facto, a negam?
A Igreja Católica e o revivalismo cristão americano julgam que sabem a resposta. Se a vida humana, o dom divino, se define estritamente pela vida orgânica, têm razão. Mas se, dom divino ou não, a vida humana excede esta radical simplicidade, outros problemas se põem. Primeiro, o problema do limite a partir do qual ela deixa de ser humana. Segundo, o problema de quem marca esse limite: o próprio, a família, um procurador legal? E, terceiro, o problema da intervenção clínica para conservar a vida, qualquer forma de vida, que hoje nenhuma regra orienta ou restringe. O Vaticano falou nos "carrascos" de Terri Schiavo. Resta apurar quem são, ou foram.

1 Comments:

At 12:51 da manhã, Blogger MadLCP said...

Parece-me bem posta esta prespectiva. Permito-me duas respostas: Sim, vida será toda a vida orgânica. Não, não se pode considerar toda a vida como sagrada e protegida a todo o custo. É preciso ponderação. E não me digam que não conseguimos perceber quando a vida é vida, ai de nós!

 

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